Os banhos nos Sobrados e nos Mocambos do Século XIX


                 
              Típica residência senhorial do século XIX, hoje é o Museu da Abolição

As praias, nas proximidades dos muros dos sobrados do Rio de Janeiro, de salvador, do Recife, até os primeiros anos do século XIX, eram lugares por onde não se podia passear, muito menos tomar banho salgado. Lugares onde se faziam despejos; onde se descarregavam os gordos barris transbordantes de excremento, o lixo e a porcaria das casas e das ruas; onde se atiravam bichos e negros mortos. O banho salgado é costume recente da fidalguia ou da burguesia que, nos tempos coloniais e nos primeiros tempos da independência, deu preferência ao banho de rio. “Praia” queria dizer, então, imundice. O rio é que era nobre. Muita casa grande de sítio, muito sobrado, foi edificado com a frente para a água. No rio se tomava banho de manhã e, à tarde, se passeava de canoa ou de bote, os chapéus-de-sol abertos sobre os botes. Pelo rio, e de canoa, se faziam mudanças de casa.

                À noite, tempo de luar, os estudantes do Recife saíam de bote, pelo rio, fazendo serenata às meninas dos sobrados da Madalena e de Ponte D’Uchoa.

                Muita casa de sítio, e de sobrado, tinha seu banheiro de palha à beira do rio mais próximo. Banheiro onde o pessoal fino se despia, caindo, então, regaladamente, dentro da água. Algumas senhoras mais recatadas conservavam o CABEÇÃO por cima do corpo. Os homens raramente dispensavam um gole de cachaça para fechar o corpo.

                Mas o banho mais característico de gente de sobrado foi de GAMELA e o de ASSENTO, dentro de casa. O banho de cuia. Os jornais da primeira metade do século XIX estão cheios de gamelas, aos poucos substituídas por tipos mais finos de banheiros. São muitas as tintas e gamelas, aos poucos substituídas por banheiros de cobre ou de flandres, que passam pelos anúncios de jornal da primeira metade do século XIX.

                Para a gente de mais idade, o banho era sempre morno, inteiro ou de assento. Uma das gabolices de alguns sobrados ilustres era que deles escorresse para a rua a água dos banhos mornos. Água azulada pelo sabonete fino e cheirando a aguardente de qualidade. Os fidalgos das “casas nobres” se orgulhavam de não feder a negro nem a pobre.

                Deve-se notar que o sabão, a princípio fabricado em casa, foi um dos artigos que se industrializaram mais depressa no Brasil. A tal ponto que, no meado do século XIX, grande parte das fábricas do Império eram de sabão e de velas.

                Quanto à gente dos mocambos, é claro que entre ela o luxo do sabão não se desenvolveu. Nem entre ela nem entre a pretalhada das senzalas. O budum, a catinga, a inhaca, “cheiro de bode”, dos negros em torno do qual cresceu todo ramo de folclore, no Brasil, deve ter sido o exagero do cheio de raça – tão forte nos sovacos – pela falta, não tanto de banho, como de sabão, em gente obrigada aos mais duros trabalhos. Por que do banho, o negro, a gente do povo, mulata – e não apenas a mameluca e a cabocla – nunca se mostraram inimigos no Brasil.

     

Origem do texto


                Autor: FREYRE, Gilberto
                Titulo: “Sobrados e Mocambos”
                Local da edição: Rio de Janeiro
                Editora: Livraria José Olímpio / MEC
                Ano da edição:1977
PÁGINAS: 195 – 197
                ACERVO: Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco ( Coleção pernambucana )







Vocabulário




Excremento : fezes
Cabeção : uma espécie de túnica que era usada pelas mulheres, por baixo do vestido
Gamela : vasilha de madeira ou de barro, usada para lavagens ou para dar comida aos animais domésticos
Gabolices : ato ou dito de gabarola, jactância, quando alguém gaba a si mesmo
    Flandres : ferro estanhado, usado no fabrico de numerosos utensílios,  lata.

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